#20 Estilo de Vida e Saúde mental
Como a vida cotidiana (e seus hábitos) pode afetar na saúde mental e o que a ciência sabe sobre isso atualmente.
Há quase dois anos escutei pela primeira vez o termo “Psiquiatria Nutricional” e confesso que, inicialmente, estranhei e fiz uma careta. rs
Sabemos que, especialmente, a Psicologia é rodeada de pseudociências e quando escutei o termo acima, logo desconfiei que fosse ser mais uma promessa de tratamento do tipo “beba água com limão e seja menos ansioso”. Não estranho nem um pouco, quando vejo profissionais com seu ‘@’ no Instagram começando com “Dr” para garantir credibilidade em tudo que posta, falando um monte de bobagens sem embasamento algum. Diante do número de maus (ou despreparados) profissionais, sempre tenho uma certa cautela quando escuto um novo termo por aí.
Mas segui pesquisando e assisti a duas aulas das meninas da Nova Psique sobre Psiquiatria Nutricional e a partir desse momento entendi o que se referia e entendi que temos um loooongo caminho pela frente.
Mas comecemos pelo começo. Antes de abordar aqui na newsletter o que é a tal da Psiquiatria Nutricional, resolvi falar sobre a Psiquiatria/Psicologia/Medicina do estilo de vida (que tem como UM DOS fatores a parte nutricional).
Medicina do Estilo de Vida (MEV)
O termo lifestyle medicine foi utilizado pela primeira vez em 1989 em um simpósio europeu e somente em 1999 tendo uma primeira publicação dedicada ao tema - do cardiologista James Rippe. Ainda sim profissionais de saúde e pesquisadores trabalhavam e realizavam pesquisas de forma independente, sem existir uma noção de que tais trabalhos faziam parte do que hoje conhecemos como uma especialidade/área de atuação. Somente em 2003 foi fundada a primeira instituição oficial dedicada à pesquisa e disseminação de conceitos da MEV » American College of Lifestyle Medicine. No Brasil, a MEV se estabeleceu em 2018 (portanto, MUITO recente) com a fundação do Colégio Brasileiro de Medicina do Estilo de Vida.
Definição de MEV:
O uso de abordagens de estilo de vida, baseadas em evidências, tais como: (1) dieta saudável; (2) atividade física regular; (3) sono restaurador; (4) controle do estresse; (5) prevenção do uso de substâncias tóxicas e (6) conexão social positiva - como modalidades terapêuticas primárias para tratamento e prevenção e, em alguns casos, reversão de doenças crônicas.
A MEV se trata de uma estratégia complementar para auxiliar a mitigar os efeitos nocivos que a cultura contemporânea em que estamos inseridos pode causar, já que não estamos preparados biologicamente para ela. Não há pretensão alguma da MEV ser uma abordagem isolada a medicina tradicional, nem de negar os efeitos farmacológicos e cirúrgicos desenvolvidos.
O ponto principal da MEV é a mudança comportamental, a escolha de hábitos que tragam mais benefícios que malefícios a longo prazo. Não se trata de indicações generalistas, mas da participação ativa das pessoas e o entendimento quanto a importância de suas ações.
Fazer escolhas difíceis no curto prazo para colher bons resultados no longo prazo.
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1. ALIMENTAÇÃO SAUDÁVEL
Quando falamos de dieta saudável, não falamos de dieta restritiva ou de dietas da moda. Dieta significa hábito alimentar. E ter um hábito alimentar saudável é pautar sua alimentação, majoritariamente, em alimentos saudáveis - ou seja, mais próxima de uma alimentação com comida de verdade - com menos industrializados, com menos ultra processados.
“Descascar mais, desembalar menos” ou “Mais geladeira menos despensa”
Falando assim parece simples, mas a questão é mais complexa do que parece, pois depende de estabelecermos um novo hábito - envolve mais ao comportamento do que a nutrição em si. Todos nós sabemos o que comer, o problema está em estabelecer escolhas melhores todos os dias e deixar que as exceções sejam exceções (portanto, raras).
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2. SONO REPARADOR
O segundo tópico diz respeito a higiene do sono (teremos uma newsletter específica sobre este tema aqui também!). O sono, assim como a comida, a água e o ar, é uma necessidade vital para nossas vidas. E a perda de sua qualidade traz graves consequências à saúde - aumentando o risco para doenças cardiovasculares, metabólicas e psiquiátricas. Assim como o ato alimentar, o ‘dormir’ depende de uma cadeia de comportamentos voluntários. O modo de vida que temos atualmente dificuldade (e muito) escolhas adequadas a uma boa higiene do sono.
Desconectar-se tornou um desafio, é uma barreira para o número de horas necessárias ao sono saudável (e reparador). Recebemos estímulos a todo o tempo.
Vivemos em uma sociedade que respira FoMo (fear of missing out), efeito que é caracterizado pelo medo de estar fora das experiências que estão sendo vivenciadas por “todos”. A consequência disso é que estamos o tempo todo mergulhados em novos lançamentos, comprando novos livros, pesquisando as indicações, consumindo, consumindo e consumindo. E, obviamente, as longas horas de sono necessários para o corpo se restaurar são encaradas como um enorme desperdício.
Este é mais um tópico em que a implementação de hábitos e a consequente mudança comportamental é fundamental.
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3. ATIVIDADE FÍSICA REGULAR
A atividade física regular é bem estabelecida na ciência atualmente, como um fator de prevenção de doenças crônicas e transtornos mentais. Sendo o sedentarismo um fator de risco para o desenvolvimento de doenças crônicas, transtornos mentais e suicídio.
Na prática, o saber não é sinônimo de agir.
Falo com propriedade aqui. Implementar um novo hábito é MUITO difícil. E alguns, em especial, são muito mais difíceis que outros. Mas se puder ajudar como inventivo, falarei um pouco sobre minha experiência anedótica:
No final de 2020, perdi meus pais com uma diferença de 20 dias entre um e outro. Passei os meses seguintes em uma espécie de choque. O luto me trouxe uma dormência perante a vidai, sabe? E por mais que eu tenha conseguido retomar minha vida aos poucos ao longo de 2021, fiquei com sequelas dessa grande perda. A maior delas foram algumas crises de ansiedade que antes não existiam, um humor mais rebaixado um dia aqui e ali.. não foi algo grandiosos, que impactou minha vida, mas foi grande o suficiente para me fazer sofrer, para me incomodar, para impactar minha forma de levar a vida. E por mais que eu já fizesse terapia, somente ela, não estava dando conta. Em set/22 eu decidi, finalmente me inscrever na academia e sabia que só isso, como todas as outras vezes ao longo dos meus 35 anos, não resolveria. No mesmo dia, fechei um personal para me acompanhar, para me ajudar a instalar o hábito. Se o compromisso comigo não estava funcionando, talvez com um terceiro funcionasse. FUNCIONOU. Eu vou a academia pelo menos 3 vezes na semana. É ótimo, perfeito? Não! Mas é melhor que zero.
Além disso, de fato, e tenho reparado que meu humor melhorou, que minha ansiedade está mais adequada - ou seja, me sinto ansiosa em contextos e situações em que faz sentido me sentir ansiosa e não inesperadamente como antes ou a partir de alguma lembrança...
Há efeitos comprovados que a atividade física auxilia muito em quadros psiquiátricos diversos, mas principalmente: Transtornos de humor, transtornos ansiosos, quadros de demência e transtornos de dependência química e esquizofrenia.
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4. COMBATE AO USO DE SUBSTÂNCIAS DE ABUSO
Não é incomum que substâncias psicoativas como cigarro, álcool e outras drogas são utilizadas como estratégias de enfrentamento de insônia, mal-estar, estresse e etc.
Como consequência, o sujeito adiciona mais uma questão à sua vida: dependência química e o aumento de riscos graves à sua vida.
Inclusive, as principais ferramentas utilizadas pelos profissionais da MEV nasceram do tratamento de dependência química: Entrevista Motivacional e Modelo transteórico de mudança.
5. CONEXÃO INTERPESSOAL
O ser humano é um ser social e esta é um dos principais fatores de proteção. Inclusive, a solidão é um fator de risco para doenças cardiovasculares maior que a obesidade.
A percepção de isolamento está entre as principais causas de estresse crônico em adultos.
Nosso mundo tem mudado a forma de vivermos em comunidade. Temos hoje uma população mais velha (o número de pessoas com mais de 60 anos triplicou desde 1950), é maior o número de pessoas morando sozinhas, famílias em novas configurações, abo os pais que trabalham fora e sentem-se muito cansados no fim do dia para dedicar muita atenção aos seus filhos, maior número de divórcios, relacionamentos mais líquidos e rasos e uma drástica forma de interação social com o advento da internet e redes sociais.
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6. MANEJO DO ESTRESSE
Não se engane, não estamos aqui falando de um olhar positivo para a vida. Há muitos fatores que não estão em nossas mãos e não dependem de nós. Mas devemos sim mexer nos fatores que temos controle. Um evento estressor é todo aquele que demanda energia para adaptação e que quando se torna crônico pode resultar em adoecimento.
Uma pessoa com altos níveis de estresse tem piora do padrão alimentar, maior tendência ao sedentarismo, piora na qualidade do sono, altos índices de isolamento e maior risco para uso de substâncias psicoativas.
Portanto, fornecer ferramentas de manejo dos fatores desencadeantes a uma vida estressante é passo fundamental para conseguir administrar os demais fatores.
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PSIQUIATRIA DO ESTILO DE VIDA
Entendido os pontos gerais da Medicina do Estilo de Vida, o que diferenciaria para a Psiquiatria do Estilo de Vida? Na verdade não muita coisa quanto aos aspectos principais, as diferença é o foco nas pesquisas e o efeito que uma vida cotidiana mais saudável terá em sua saúde mental.
É crescente o número de pesquisas que demonstram correlação entre dieta saudável, atividade física, controle de estresse, sedentarismo ao desfecho clínico/psiquiátrico e também crescente é o número de ferramentas de prevenção e intervenção como coadjuvantes ao tratamento terapêutico.
The Global Burden of Disease Study
O The Global Burden of Disease Study é um grande esforço coletivo de muitos cientistas, em torno de 1800 pesquisadores espalhados em 180 países, para realizarem o levantamento das principais mortalidades e morbidades combinadas com as características das populações. O objetivo é identificar fatores de risco para determinadas doenças. Com base nos resultados levantados, são traçados planos de ação e mais estudos são desenhados a partir desses achados. Considerando a quantidade de pessoas pesquisadas (grandes e diversificadas amostras) e a qualidade dos estudos levantados considera-se que os resultados produzidos são bastante confiáveis. E os dados levantados são: 1. Mortalidade 2. Morbidade 3. Fatores de risco 4. Características populacionais.
Nos resultados apresentados do estudo divulgado em 2010, o grupo de Transtornos mentais apresentou o maior percentual de total de anos vividos com incapacidade. Ou seja, do total de anos vividos, o quanto determinada condição clínica gerou um grande comprometimento na vida do indivíduo. O grupo de Transtornos mentais esteve a frente quando comparado a todos os outros grupos de doenças que temos conhecimento atualmente.
O último levantamento do Global Burden of Disease (2019) traz dados ainda mais alarmantes:
» A obesidade como 3º principal fator de risco à mortalidade (atrás de hipertensão arterial e hiperglicemia mundial. Sendo no Brasil, a obesidade o 1º fator de risco à mortalidade e tabagismo como 3º.
» Comportamentos que estão correlacionados aos fatores de risco são: tabagismo, uso abusivo de álcool, sedentarismo, dieta pobre em nutricentes e rica em produtos industrializados.
» Transtornos mentais, que afetam quase 30% da população mundial, estão entre os principais responsáveis pelo aumento da carga de doença global.
» Somados, são responsáveis por cerca de 32% dos anos vividos com incapacidade.
» Pacientes psiquiátricos tem maior risco para morte prematura por todas as causas quando comparados a população geral. A expectativa de vida é reduzida por consequência dos menores cuidados com a saúde.
Apesar dos avanços nas psicoterapias e no tratamento farmacológico, grande parte da população não atinge remissão total (quanto tem acesso ao tratamento) ou mesmo não possuem acesso a serviços de saúde mental especializados. Estes dois motivos são mais que suficientes para pensarmos em medidas de prevenção, já que transtornos mentais devem ser encarados como uma questão de saúde pública.
RECOMENDAÇÕES
» Psiquiatria do estilo de vida - Guia Prático Baseado em Evidências
» Por Que Nós Dormimos: A Nova Ciência do Sono e do Sonho
» Hábitos atômicos: Um método fácil e comprovado de criar bons hábitos e se livrar dos maus.