#29 Filtro Mental (Distorções Cognitivas)
A famosa telepatia… você imagina que sabe o que as pessoas pensam sem ter evidências suficientes dos seus pensamentos.
Na newsletter #25 introduzi o assunto “Distorções Cognitivas” e aproveitei para explicar bem superficialmente o modelo cognitivo. Aquela News foi dedicada a explicar especificamente sobre o Catastrofismo e prometi que voltaria para explicar as distorções mais comuns. Aqui estamos com mais uma.
Uma das ilusões mais comuns que cometemos no dia a dia é a de que sabemos o que se passa na cabeça das outras pessoas e muitas vezes concluímos que os outros deveriam também saber o que se passa na nossa.
"Não preciso nem dizer, ele sabe" é uma crença recorrente - e causa freqüente de desentendimentos (e decepções) - quando nos damos conta que o outro não só não sabe como nem sequer imagina que a gente acha que ele devia saber.
Racionalmente, sabemos que a telepatia é impossível, mas, mesmo reconhecendo esse fato, agimos como se a telepatia fosse parte integrante do repertório da habilidade humana, tais como respirar, piscar os olhos ou engolir.
Essa ilusão pode se manifestar pela presunção de que sabemos o que os outros estão pensando: “Nem adianta pedir o emprego, eu sei que ele jamais me contrataria.”
ou
Através da premissa de que os outros não só podem como tem a obrigação de saber exatamente o que nós estamos pensando, sem que precisemos lhes dizer: “Se ele me amasse de verdade, saberia exatamente o que eu queria”.
Quanto mais íntima a relação, maior a ilusão
“Nós estamos juntos a muito tempo, nos conhecemos bem, sei exatamente como ela pensa.”
Se identifica?
Quanto mais íntima a relação, maior a ilusão. Quando conhecemos alguém muito bem, podemos imaginar coisas com base naquilo que sabemos e acertar grande parte das vezes, gerando a ilusão de sempre "saber o que passa na cabeça" do outro.
E é exatamente neste pontos que os estragos são maiores, em que o diálogo poderia evitá-los. Afinal, ás vezes, somos capazes de prever (e acertar) os desejos ou os atos de alguém que conhecemos bem - e vice-versa. O problema é partir do pressuposto que acertaremos (ou acertarão) sempre.
A verdade é que as pessoas são imprevisíveis.
Vamos a um exemplo:
Clara chegou do trabalho e mesmo cansada viu que não poderia mais adiar a ida ao mercado para comprar coisas para a casa, não tinha mais nem café para o café da manhã do dia seguinte. Deixou um bilhete na bancada da cozinha avisando seu marido que iria ao mercado. Quando retornou do mercado, carregando mais sacolas que havia imaginado, notou o carro da família na garagem e subiu para o apartamento. Chegando em casa, enquanto guarda as coisas na geladeira e dispensa, Clara entra em uma espiral de raiva com pensamentos como “sou sobrecarregada, chego em casa e ele nem aí para me ajudar”; “poderia ter me ligado para me buscar lá no mercado”; “cheguei em casa e ele nem para me ajudar a guardar as coisas, está me ignorando”; “deve estar lá no quarto vendo tv e com preguiça de vir até aqui”.
Quando Clara chegou em casa, não chamou pelo marido e nem considerou outras alternativas, menos problemáticas, supôs o pior da situação. Apesar do carro na garagem, ela nem sabia ao certo se ele, de fato, estava em casa ou se havia mesmo lido o bilhete que ela deixou ou que ele saberia que ela chegou com muitas compras e gostaria de ajuda. Tudo isso ocorreu em seus pensamentos. Ela supôs o que ele estava pensando e pressupôs que ele deveria saber que ela queria ajuda.
No exemplo acima Clara comete um erro duplo: não tinha como saber o que está passando pela cabeça do seu marido assim como ele não tinha como saber que ela queria ajuda.
Quando limitamo-nos a presumir, corremos o risco de nossas premissas estarem erradas.
Por esse motivo, é muito importante considerarmos a possibilidade de não sabermos o que o outro está pensando exatamente, ou de estarmos imaginando erroneamente a interpretação do outro sobre os fatos. Ao admitir essas possibilidades você se abrirá para o diálogo e duas possibilidades muito mais interessantes surgirão
1. você poderá receber uma resposta muito mais interessante;
2. você, ao menos, compreenderá corretamente a situação, de modo a, se necessário, ter condição de tomar alguma providência para remediá-la.
O hábito de presumir
Veja bem, não podemos parar de fazer qualquer tipo de suposição. Todo mundo, em alguma medida, faz suposições acerca dos pensamentos, desejos e necessidades dos outros e está tudo bem! Não podemos parar os outros para confirmar qualquer comunicação não verbal que formos interpretar (qualquer sorriso, piscadela ou aceno).. seria uma loucura, não é mesmo? Além de super cansativo para a pessoa que confirma e extremamente entediante para as pessoas que convivem com ela. Mas a maioria dos pressupostos que fazemos em nossa vida cotidiana ou estão corretos ou são inofensivos.
Interpretar um meio sorriso como uma paquera e piscar para o outro.. que mal tem? Se estiver houver interesse a coisa vai andar.. se não houver…. A vida segue.
Presumir faz parte da vida, é o esperado. Enquanto espécie, fomos desenvolvendo a habilidade de reconhecer e atribuir significado a dicas, comportamentos, gestos, traços, posturas e expressões faciais dos outros no sentido de detectar pistas e extrair delas algumas conclusões como um fator de sobrevivência mesmo, para que o convívio social seja mais fluido. Dá para pressentir quando alguém está taciturno, nervoso, feliz ou em qualquer outro estado de espírito… isso estará estampado na cara. As conclusões que tiramos também são permeadas pelas nossas histórias de vida, de situações familiares.
Quando criança via sua mãe na porta de casa com as mãos na cintura, batendo o pé, cenho franzido e os lábios comprimidos, provavelmente concluía “ih, mamãe está brava!”.
Se encontra uma amiga que está com a cabeça baixa, ombros caídos e olhos inchados - não é muito difícil concluir que ela está chateada / triste.
Falei mais sobre isso em:
Fenômeno do Fechamento
Fenômeno do nosso cérebro que faz com que produza contornos que não existem
Para entender esse fenômeno, vamos ao exercício. Considere o desenho abaixo, é uma imagem parcial de uma forma simples:
O que você diria ser? Um CÍRCULO? Sem dúvidas essa é uma possibilidade. Mas também poderia ser uma lua minguante ou uma bola de sorvete:
Claro que, quanto mais pistas você tiver, mais fácil será adivinhar - completar com sucesso. Isso vale também para os sinais do ambiente, como falamos no tópico anterior. Temos uma pista e logo tendemos a querer descobrir o enigma, adivinhar o que significam aquelas sinais.
Porém, às vezes (ou muitas vezes?), as pistas que temos não são suficientes e nossa conclusão é errada.
Erros de interpretação
Quanto mais/melhor conhecemos alguém, mais dados vamos colhendo sobre como ela reage e se comporta diante de algumas situações:
Se teve um dia ruim » chega em casa mais calada
Quando está contrariada e aborrecida com alguma coisa » faz um movimento com a boca
Quando está diante de suas comidas preferidas » lambe os lábios
Sempre é possível que alguém que você acredita conhecer muito bem resolva mudar de idéia - ainda que apenas numa determinada ocasião, por um motivo específico -, como também é possível que você não conheça a pessoa tão bem quanto acredita. Sempre podemos manter pequenas partes nossas em segredo - mesmo daqueles que mais amamos e nos são mais próximos.
A crença de que sabemos exatamente o que as pessoas estão pensando pode trazer problemas quando acreditamos que podemos praticá-la com (1) todo mundo, (2) perfeitamente e (3) o tempo inteiro.
Situações em que caímos na armadilha da telepatia
Quando você acha que consegue adivinhar o que o outro está pensando e falha miseravelmente:
Parte do pressuposto acerca do que alguém está pensando com base no que você pensaria naquela mesma situação;
Faz uma suposição com base em um comportamento do passado;
Supõe com base no que você imagina que vá acontecer - e se precipita;
Conclui algo com base na resposta que deseja receber;
Chega a uma conclusão com base em dados insuficientes;
Não leva em consideração diferenças culturais e de personalidade - supõe o pensamento ou comportamento do outro com base em seu contexto.
Interpreta mal dicas visuais ou verbais;
Todos os motivos pelos quais a adivinhação nem sempre dá certo com você (para com os outros) aplicam-se de modo igual a sua expectativa de que funcione dos outros com você.
E há diversos motivos para que essa falha exista:
O outro pode imaginar algo completamente diferente do que você quer fazer, com base no que ele próprio faria em seu lugar;
O outro pode não ter se dado conta que você mudou de ideia, de quer algo agora que não queria antes;
Pode se precipitar em algumas conclusões
O outro esteja enxergando pistas inexistentes ou as lendo de forma inadequadas;
Você pode estar mandando mensagens que o interlocutor simplesmente não consegue entender, seja por uma cultura diferente ou por não conhecê-lo tão bem assim.
Quando enviamos mensagens em códigos, não sabemos como o interlocutor irá decifrá-las.
Se indagada em seu aniversario o que gostaria de receber como presente e sua resposta for “algo que me esquente para a próxima viagem de frio”, pensando em um casaco trent coat, pode receber um par de meias…
Como abrir mão desse hábito?
Ou ser mais eficiente na adivinhação?
Abrir mão desse hábito é também estar mais disposto a correr mais riscos, se mostrar mais vulnerável. Passa pelo desconforto do diálogo.
Tentar descobrir o que outro está pensando evita a necessidade de falar abertamente, de se expor e, talvez, se deparar com uma realidade diferente da qual gostaríamos.
Pode parecer mais confortável pensar “ele é insensível, não percebe do que preciso” do que se expor e ser rejeitada.
Pode ser melhor pensar que seu chefe é um imbecil de não promovê-lo do que chamá-lo para uma conversa de Feedback e receber a noticia que você não estava preparado para um cargo acima.
Pode parecer mais romântico esperar que o outro saiba o que você quer, que não é preciso nunca colocar em palavras - tendo a certeza que se aquela pessoa o amasse o bastante, naturalmente saberia no fundo do coração dela o que você deseja.
Talvez seja muito difícil encarar o fato que algumas pessoas são, de fato, negligentes, egoístas, obtusas.
Talvez seja menos embaraçoso presumir as criticas alheias através dos sinais das pessoas do que escutá-las efetivamente.
Presumir pode ser um comportamento de proteção - você se submete a uma pequena dor para evitar um sofrimento, talvez, maior.
O problema disso é que, ao deixarmos de verificar, analisar, expressar, podemos concluir algo precipitado e nos auto-repudiar, não dando a chance do outro confirmar ou rejeitar as inferências levantadas.
Se, num jantar romântico, você emitir sinais eróticos ao invés de verbalizá-los, e seu parceiro não entender tais sinais, você pode concluir que ele está lhe rejeitando quando ele, simplesmente, pode não ter entendido e não querer passar uma impressão ruim de si, de estar avançando o sinal.
Admitir a possibilidade de estar equivocado em sua leitura a uma determinada situação te dá a chance de (1) receber uma resposta mais interessante do que esperávamos; (2) compreender corretamente a situação de modo a, se necessário, termos condições de tomar alguma providência para remediá-la.
Dê o benefício da dúvida
Aceitar o fato de que a adivinhação / telepatia pode não estar sempre certa já é um super avanço para reconhecer quando ela pode ser útil. Ao invés de sempre assumir que sabe o que o outro está pensando e agir de acordo com essa certeza, talvez seja prudente, em algumas ocasiões, confirmar sua suspeita.
Diálogo » na dúvida, pergunte.
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RECOMENDAÇÕES
Livros para leigos
As 10 Bobagens Mais Comuns que as Pessoas Inteligentes Cometem »»» Acredite em mim, o título é muito ruim mas o conteúdo é bom! O livro vai abordar as principais distorções cognitivas e como contorná-las.
Não acredite em tudo que você sente »»» Quem disse que psicólogos são bons para escolha de títulos? O autor desse livro é uma das referências em TCC. Só vá.
A Mente Vencendo o Humor: Mude como Você se Sente, Mudando o Modo como Você Pensa »»» Não falo mais sobre título, ok?